Thursday, December 25, 2008

Varanasi



Varanasi não é de cá. E do nosso imaginário onde em todas estas mansões agora desertas junto ao Ganges havia um reino de marajás. Os amarelos e azuis agora esbatidos eram cores vivas… e ainda são quando semicerramos os olhos. O Ganges é uma névoa a esta hora tardia e nem uma luz na « terra de ninguém ». Só ao longe os sons, a chinfrineira do Ghat principal, mesquitas que ditam a hora, gritaria de miudagem, tablas e citaras, vozes. Há quem reze na solidão da noite.

Lá esta o indiano grande e os seus cães pretos com colares de prata deitados em cima da mesa, reis do Ganges View.

Demorei dia e meio a orientar-me mas agora posso descrever-te cada esquina, o velho dos posters dos deuses hindus e o rapaz dos perfumes, os pequenos templos das bifurcações e o caminho para o Golden Temple. Até o rapaz das rudrakshas eu consigo encontrar.

Esquivo-me de bosta de vaca, de gentes, de ratos mortos, de cães maltratados e de mais gentes. Esquivo-me assustada das vacas e búfalos e de todos os que têm cornos... desde que levei a cornada na coxa pela vaca assustada.

Olho para a escadaria que leva ao Ghat, para os velhos e deficientes que pedem e para os indianos que dão.

Mas sobra espaço para sentir, viver, ouvir, imaginar e mesmo sonhar. Para nos fundirmos com Varanasi até a amarmos talvez ainda mais do que ao Ganges.

Encontro o Kajel para a tua filha Isabel, e é verdade que afasta os maus espíritos dos meninos pequenos. Encontro o poster de Vishnu com os seus avatares. Encontro o Kakut sempre com a sua camisola interior branca. Bebo um chai aí na esquina enquanto passa um cortejo fúnebre « Ram Nam... » invocam o nome do deus Rama.

Desço aos ghats e esquivo-me entre os montes de madeira para evitar o cheiro a morte das cremações. O ghat principal continua em festa. Atravesso os búfalos sem respirar numa tentativa de ser transparente. Encontro Raj, hoje de fita vermelha ainda tem um ar mais mafioso. Encontro Raju mais a frente que não quer encontrar Raj. Encontro Shankar o rapaz dos japa malas que me convida a sentar sobre o « seu » pilar. Está ao sol e transpiro e transpiro ainda mais. Com vontade de mergulhar no Ganges como aqueles homens que se lavam.

Estou quase em Kedar Ghat e aqui é o meu último chai antes de subir a escadaria. Aqui nestes degraus à sombra está o homem que parece um sadhu mas que não é. Sento-me aqui desde o primeiro dia e já me serve sem o pedir. Sorri-me sempre e ensinou-me a tratar das minhas rudrakshas. Por aqui também param muitos Sadhus, todos de laranja, com um tridente da Trimutri e com penteados que têm tanto de bonito como de bizarro, desde barbas com rastas que dão nós nas pontas a rolos amarrados no topo da cabeça de forma tão perfeitamente desorganizada que diria serem preciso dias para arquitectar tal escultura. Um deles olha para mim protegido por uns óculos escuros de senhora dos anos 70... e eu para ele, curiosos das nossas diferenças.

Param pouco e seguem.

Uma mulher velha de seios a descoberto veste o sari rosa berrante.

E sigo.

Passo pelo homem que já conseguiu por a secar mais 100 montinhos de bosta de vaca desde ontem e pela mulher que hoje dorme 4 degraus acima do seu sitio habitual.

Lá em cima da escadaria com as cores de Shiva estão os rapazes a dizer mantras... e é a energia que me transmitem que me ajuda a subir.

Mesmo ao cimo atravesso o túnel. Quem cá dorme hoje não é a velha esfarrapada mas a vida toda de um Sadhu.

Atravesso o mercado, passo pelos fazedores de queijo e pela casa azul do homem que trabalha com ferro. Já ouço os sons da citara. Deve estar para acabar a aula do meu namorado.

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